01/06/2008

Pausa para um cigarro



Percorre a passo ligeiro o chão rotineiro e nem se dá conta que num gesto já mecânico conta outra vez os passos que conhece de cor. Da direita são 170 e da esquerda 310. Escolhe o trajecto consoante a pressa e a urgência, muitas vezes não pela premência do cigarro mas pela necessidade de ficar só, de sentir o ar, de ouvir o vento. O frio do fim da tarde de verão que a recebe arrepia-lhe a pele com um prazer inesperado, coroado com o primeiro trago do sabor a menta quente. Mudar de marca de cigarros foi uma óptima decisão, pensa Angelina enquanto se entretém buscando com os olhos as almas de quem a rodeia. Adora observar os outros e inventar vidas. Enquanto o faz esquece-se da sua e de tudo o que tem na realidade. Os olhos prendem-se na jovenzinha de saia ao xadrez que no cantinho do passeio parece aguardar que alguém chegue. Sente-lhe um coraçãozinho apertado pela ânsia, vê-lhe a expectativa a latejar nas têmporas. Deve esperar o namorado que provavelmente a vai beijar, desta vez com mais paixão, abrindo-lhe as portas do sonho que ainda não teve mas sabe existir. Sim, só pode ser isso. Pequena criança - pensa Angelina - ainda tão imaculada e tão feliz, oxalá tenha sorte. Dá por si a sorrir quando um carro pára e a menina corre para ele. Não consegue ver quem conduz, mas também não interessa. De que adianta a realidade? Dá mais uma passa, o cigarro ainda não vai a meio, gosta de fumar devagar. Passeia os olhos uma vez mais ao redor e deseja ver um príncipe num cavalo branco. Procura-o com o coração mirando um a um os homens que dão pequenos passos sem pressa queimando o tempo de um vício. Escolhe o de fato azul, parece-lhe mais triste que todos os outros que por ali vagueiam. Oferece-lhe uma vida feliz, não é difícil fazê-lo, basta transferir para ele a realidade dos sonhos que tem, na vida que sente perfeita. Perde-se na composição alegre de cada detalhe e assusta-se com o calor nos seus dedos dando conta que se esqueceu do cigarro que acabou por se consumir na brisa da noite que desce. Encolhe os ombros e deposita os restos no cinzeiro mais próximo murmurando um agradecimento pelo tempo que ele lhe deu para mais uma viajem ao país do faz de conta. Antes de entrar, num rasgo de esperança ainda olha para trás na busca do príncipe que há pouco nasceu mas já não o encontra. Adiante, pensa, afastando a desilusão - está na hora de trabalhar.

6 Papeis:

pin gente disse...

quantas vezes nos acontece... os outros também farão uma história quando nos olham.

abraço

Anónimo disse...

"basta transferir para ele a realidade dos sonhos que tem, na vida que sente perfeita", cometemos este erro tantas vezes...
boa noite.

Eme disse...

eu estou sentada numa mesa algures, longe do fumo que me provoca tosse, e vejo uma nuvem de fumaça com um vulto dentro que se vai espalhando no ar enquanto mira levitando as caras e corpos que caminham alheios pelo centro comercial na hora de ponta..

de repente veio uma corrente de ar

______________________________________________________________________________________

Rafeiro Perfumado disse...

Mas enquanto o princípe não aparece, o melhor seria deixar de fumar...

Eme disse...

___________________________ veio a corrente de ar e
____________________ vvvoooffff!!!


Ganhaaaamoooossss

até eu vou fumar hoje para comemorar.
:))

Ni disse...

Quantas vezes... Quantos momentos, intervalos são passados assim! Uma tentativa de sair da nossa vida entrando na dos outros. Apreciando cada pormenor, cada gesto inventado e escrevendo uma história para cada pessoa que é a nossa "vítima".

Lindo o texto. Muito real e verdadeiro...

Beijinho de saudades Cris***

 
©2007 Elke di Barros Por Templates e Acessorios